SBP Sociedade Brasileira de Psicologia

Síndrome de Asperger: conheça as diferentes nuances do transtorno do autismo

Nome da condição foi alterado e agora os sintomas estão incluídos no chamado Transtorno do Espectro do Autismo (TEA)

Lucas Rocha  CNN Brasil 
São Paulo, 18/02/2022

Reportagem da CNN conversou com pessoas de diferentes locais para revelar os principais desafios e dificuldades enfrentadas na vivência com o transtorno.

 

Por muitos anos, 18 de fevereiro foi marcado como o Dia Internacional da Síndrome de Asperger. O nome da condição foi alterado de acordo com a nova versão da Classificação Internacional de Doenças (CID), que passou a valer em 2022.

Agora, os sintomas estão incluídos no chamado Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), que reúne diferentes manifestações que afetam o desenvolvimento neurológico, presentes desde o nascimento ou começo da infância.

 
O diagnóstico do autismo é definido a partir do nível de gravidade, ou de acordo com a necessidade de apoio de cada indivíduo. São considerados três níveis: leve, moderado e severo.

Em geral, pessoas associadas anteriormente à síndrome de Asperger são consideradas autistas no nível 1, leve. Esses indivíduos podem apresentar problemas de interação social, associados à dificuldade para compreender e expressar emoções, assim como gestos, expressões faciais e demais aspectos da linguagem não verbal.

Alterações sensoriais podem fazer com que eles percebam cores, sons e cheiros de maneira mais intensa, levando a uma maior sensibilidade diante de ruídos e incômodo em situações de aglomeração. Assim como as demais condições de saúde mental, os transtornos do espectro do autismo apresentam diferentes nuances de uma pessoa para outra, o que pode adiar o diagnóstico.

A reportagem da CNN conversou com pessoas de diferentes locais para revelar os principais desafios e dificuldades enfrentadas na vivência com o transtorno.

Intolerância à neurodiversidade

Aos nove anos de idade, a escritora Kenya Diehl, 38, de Santos (SP), foi diagnosticada com o transtorno do autismo.

“Nessa época, eu não conseguia falar, tinha muitos problemas sensoriais, vomitava muito, não conseguia dormir, tinha crise de dor de cabeça, urinava na cama, todas essas questões de atraso de desenvolvimento que levaram ao diagnóstico”, conta.

Segundo Kenya, a condição de pobreza e a opção da mãe por esconder o diagnóstico de outras pessoas dificultaram ainda mais a vivência com o transtorno. Os anos seguintes foram ainda mais difíceis, até que ela buscou ajuda especializada por conta própria aos 17 anos.

“Minha mãe me largou quando eu tinha 13 anos. Sozinha, fui atrás do tratamento, que começou com medicamentos e acompanhamento psiquiátrico. A partir dali, minha mente começou a abrir para mais conhecimentos e as coisas começaram a melhorar”, conta.

Uma das principais características do transtorno do autismo associado anteriormente à Síndrome de Asperger é a interpretação literal do discurso e a dificuldade de compreensão das emoções.

“Nem sempre eles conseguem entender as próprias emoções e as emoções alheias. Há um pensamento rígido para isso, uma interpretação literal das coisas e dificuldade para entender metáforas, piadas e ironias. Isso dificulta um pouco a comunicação necessária para identificar as sutilezas da linguagem não verbal”, explica Mariana Honorato Franzoi, professora da Universidade de Brasília (UnB).

Kenya conta que o ponto de virada na melhora do quadro clínico aconteceu aos 32 anos, após um momento crítico de humilhação sofrido em uma academia de ginástica.

“Todos os personal training, os professores e alunos ficavam fazendo bullying comigo e eu não entendia, eu ria junto com eles. Na verdade, eu ria de mim mesma e não sabia. Até o momento que me perguntaram se eu era retardada, por que eu não entendia que estavam rindo de mim e que aquele não era lugar pra mim”, disse.

Ela afirma que pensou em tirar a própria vida naquele momento. No entanto, no carro, durante a volta para a casa, ela viu a cadeirinha do filho no banco de trás e encontrou forças para continuar.

“Eu vi que tinha alguém precisando de mim, que não era somente eu no mundo. Então, eu resolvi me isolar do mundo e desisti de querer tentar ser igual aos outros. Assim como minha mãe não aceitou o diagnóstico, eu também não aceitei. Naquele dia eu entendi que não seria igual a ninguém, a partir dali comecei a escrever”, disse.

Autora de três livros sobre o assunto, Kenya também atua como digital influencer ao falar abertamente sobre a vivência com autismo no Instagram. Na obra “Autismo é vida – Por dentro do meu cérebro autista”, ela narra a história de vida, as dificuldades e abusos sofridos.

“Eu sou uma sobrevivente dos abusos físicos, sofri muito por ter sido abandonada. Por não entender as indiretas e as intenções das pessoas, acabei sendo violentada mais de uma vez. Escrevi com o intuito de evitar que outras meninas autistas e até meninos sofram o que eu sofri. Contei a minha história de vida para que os pais fiquem atentos”.

Ela afirma que as experiências negativas transformaram a forma como ela busca se inserir na sociedade.

“Eu entendi que eu podia me adaptar ao mundo e que eu não iria ser igual às outras pessoas. Passei a me preservar, sabendo que determinados locais não são ideais pra mim. A função sensorial pode ser prejudicada por muito barulho, por exemplo. Antes eu ia para ser igual aos outros, não faço mais coisas que me machuquem e me coloquem em risco”, diz.

Importância do compartilhamento de experiências

O jornalista e pesquisador Tiago Abreu, 26, de Porto Alegre, foi diagnosticado com o transtorno do autismo em 2015. Ele conta que desde o período escolar teve problemas relacionados à interação social.

“Essa questão da dificuldade de interação social muitas vezes se traduz em iniciar amizades e principalmente mantê-las. Pessoas que estão nessa parte ‘leve’ do autismo não têm déficit cognitivo, então elas conseguem interagir e passar despercebidas socialmente. Só que, muitas vezes, elas cometem gafes, têm uma falha de perspectiva do que o outro espera”, afirma.

Segundo o jornalista, o diagnóstico foi uma peça importante para a compreensão do transtorno do autismo. “Desde então, me tornei uma pessoa mais interessada no tema, comecei a estudar e pesquisar o autismo desde o início da graduação e agora no mestrado”, afirma.

Nesse processo, Abreu também destaca o compartilhamento de experiências com outras pessoas autistas.

“Esse contato com outras pessoas que tinham o mesmo diagnóstico foi algo muito positivo. Começamos a trabalhar em projetos juntos que existem até hoje. O autismo é um diagnóstico muito variável, do ponto de vista da experiência. Uma das maiores dificuldades que percebo em pessoas dentro do espectro do autismo é identificar aquilo que é da personalidade do indivíduo e aquilo que é do autismo”, disse.

Hoje, o jornalista conta com um podcast chamado Introvertendo, com episódios semanais sobre temas relacionados à neurodiversidade e à vivência com o autismo. Ele também acaba de lançar o livro “O que é neurodiversidade?“, publicado pela Cânone Editorial. Além do contexto histórico do conceito, a obra reúne repercussões sociais, críticas e perspectivas do uso do termo no Brasil ao longo do tempo.

“A neurodiversidade é basicamente um paralelo com a ideia de biodiversidade. Assim como existe uma diversidade entre os animais, entre os seres humanos temos uma diversidade cerebral, da forma de pensar e de agir e que isso é importante até para a qualidade da humanidade”, explica.

Segundo Abreu, as discussões acerca da importância da inclusão têm sido ampliado nos últimos anos, especialmente no contexto das redes sociais.

“No geral, as pessoas reconhecem que a inclusão e o respeito à diferença é algo importante. A questão é que a maioria das pessoas não sabe como fazer isso na prática. Esse é um dos maiores desafios e a própria comunidade do autismo precisa desenvolver estratégias para tentar responder a isso, o que envolve diversas áreas que muitas vezes não dialogam entre si”, afirma.

Foco exagerado em assuntos

Conversas que giram em torno de si mesmos ou de um determinado tópico e o foco exagerado em um assunto específico também são características associadas a esse espectro do autismo.

“Tem a questão dos interesses muito específicos e intensos, uma característica por se interessar por algo inusitado e ter um hiperfoco nisso. Alguns realmente adoram ciência, astronomia, insetos e se aprofundam muito naquilo, ao ponto que, às vezes, esse hiperfoco vira uma habilidade”, explica Mariana.

O professor de História, Rafael Alves Viana, 38, de São Paulo, conta que desde a infância teve como foco a busca por conhecimentos sobre futebol. Da adolescência para a vida a adulta, conteúdos históricos se tornaram o alvo da sua preferência – o que motivou a escolha pela profissão.

“Você cria um interesse demasiado e acaba virando uma rotina diária de pesquisar sobre aquele assunto ou aqueles assuntos em específico. É uma coisa que destoa bastante, nessa questão do hiperfoco é um interesse exagerado da sua parte”, diz Rafael.

Segundo ele, o interesse e hiperfoco em temas específicos acaba refletindo nas conversas com familiares e amigos. “As pessoas que cercam quem vive com o transtorno precisam saber disso e ter um certo cuidado em relação a isso”, afirma.

Problemas de socialização e dificuldades para a realização de tarefas cotidianas levaram o professor a buscar o atendimento especializado. O diagnóstico foi confirmado em 2013, após o acompanhamento psicológico e encaminhamento a outros especialistas.

“Eu comecei a entender por que coisas consideradas comuns e corriqueiras eram tão difíceis pra mim, como atividades em grupo, festas e eventos, por exemplo”, afirma.

Ainda hoje, ele se vê diante de dificuldades no entendimento de expressões e metáforas para além do contexto literal. “Com o tempo, você vai aprendendo a lidar com isso e guarda aquela expressão na memória. Na hora em que ela for usada em um contexto, você vai lembrar que ela não quer dizer o seu sentido literal”, diz.

Prevalência do autismo

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que uma em cada 160 crianças apresenta transtornos do espectro do autismo. Os dados precisos deste cenário no Brasil esbarram na falta de estudos sobre a prevalência na população.

A pesquisadora Aline Abreu e Andrade, da Sociedade Brasileira de Psicologia, aponta para um aumento significativo na prevalência do transtorno do espectro autista.

Nos Estados Unidos, o levantamento mais recente do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, realizado em dezembro, indicou a prevalência de 1 caso para cada 44 crianças.

Segundo a especialista, não há uma definição clara sobre os motivos para o aumento da notificação de casos. “Não se sabe se está havendo um hiperdiagnóstico ou se tem alguma variável ambiental que esteja afetando o aumento da prevalência dos casos de autismo. O fato é que houve uma mudança do nível de especificidade do diagnóstico, que é mais abrangente hoje do que há um tempo atrás”, diz.

Origem do nome
A condição anteriormente descrita como Síndrome de Asperger fazia alusão ao médico austríaco Hans Asperger, que descreveu pela primeira vez a condição. Antes mesmo das alterações na Classificação Internacional de Doenças entrarem em vigência, já existiam discussões sobre a modificação no nome da condição clínica.

Um estudo, publicado no periódico Molecular Autism, em 2018, apontou que o médico teria colaborado com o regime nazista. Os documentos obtidos pelo pesquisador austríaco Herwig Czech apontam que Asperger legitimou políticas de higiene racial.

Segundo o artigo, Asperger conseguiu se acomodar ao regime nazista e foi recompensado por suas afirmações de lealdade com oportunidades de carreira. Embora não tenha feito parte do partido nazista, ele se juntou a várias organizações afiliadas ao NSDAP e legitimou publicamente políticas de higiene racial.

A análise foi realizada com base em uma ampla gama de publicações contemporâneas e documentos de arquivo inexplorados até então, incluindo os arquivos pessoais de Asperger e as avaliações clínicas que ele escreveu em seus pacientes.

 

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