SBP Sociedade Brasileira de Psicologia

Brutalidade policial: uma análise psicossocial

André Vilela Komatsu. Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP). Vice coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial (GEPDIP-USP).
Efraín García Sánchez. Psicólogo e Mestre pela Universidad Del Valle. Especialista em Servicio de Policía (Convivencia y Seguridad Ciudadana) pela Dirección Nacional de Escuelas de la Policía Nacional de Colombia. Doutor em Psicologia pela Universidade de Granada. Pós doutor pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP). Pesquisador do Laboratório de Psicologia Social da Desigualdade da Universidade de Granada.
 

No dia 24/05/2022, uma ação da Polícia Militar, em conjunto com a Polícia Rodoviária Federal – teoricamente planejada, durantes meses - terminou com 25 pessoas mortas, a segunda operação mais letal registrada no estado do Rio de Janeiro.  No dia seguinte, 25/05, agentes da Polícia Rodoviária Federal foram filmados em uma ação de extrema barbaridade que ocasionou a morte de Genivaldo de Jesus Santos. Os desfechos trágicos advindos de ações policiais têm chegado cada vez mais ao conhecimento da população, em virtude da crescente facilidade com que esses eventos podem ser registrados. Contudo, se para alguns pode parecer que a brutalidade policial consiste em um fenômeno recente, para as pessoas que vivem nas periferias essas violências são há muito conhecidas; fazem parte do seu dia a dia.

Além da brutalidade policial, caracterizada pelo uso da força excessiva (violência), esses recentes eventos compartilham outros elementos em comum: todas as vítimas eram negras e pobres. As polícias são a representação do Estado na vida cotidiana das pessoas e o impacto de suas ações ajudam a construir (ou destruir) a confiança nas instituições legais, o respeito à lei e a disposição de cooperar com as autoridades. Além disso, as ações policiais refletem e perpetuam crenças e valores que se difundem na sociedade, e o resultado desses processos ajudam a construir a cidadania e a coesão social, o que deve ser do interesse de todos os brasileiros.

A desproporcionalidade com que as violências atingem negros e pobres mostram que esses eventos não se constituem em incidentes, mas refletem um modus operandi institucionalizado nas polícias, descrito na literatura como policiamento e violência racial. Embora parte das violências policiais possam ser explicadas por falhas individuais dos agentes envolvidos, os achados no campo da Psicologia Social mostram que as características pessoais (disposições, personalidade, caráter, preconceitos) explicam apenas uma pequena fração dos casos das violências racial e de classe. Mas, muitas vezes, os casos de violência policial são referidos como casos individuais isolados ou como o resultado de algumas "maçãs podres". Cabe, portanto, o questionamento de se há algo na cesta que está estragando essas "maçãs". Ou seja, é importante nos perguntarmos se existe algo no nível institucional (e social) que esteja facilitando uma atuação que extrapola no uso da força e que tende a dirigir essa ação a um grupo social específico – os negros e/ou pobres.

Por esse motivo, é preciso entender fatores mais amplos que envolvem a estrutura social e a cultura das organizações policiais, e interagem com processos psicológicos (cognitivos e motivacionais), para gerar as condições que conduzem à reiterada violência policial, predominantemente contra negros e pobres. A Psicologia pode e deve contribuir com essa reflexão, na medida em que integra aspectos sociais e individuais, para compreender por que profissionais que se considera serem altamente treinados – e servidores públicos - se comportam de determinada maneira, ao ponto de cometerem atos violentos, cruéis ou degradantes, como os que testemunhamos recentemente.

Primeiro, é importante começar com a questão de como são percebidos pela Polícia (e pela população em geral) os habitantes dos bairros e regiões mais desfavorecidos do Brasil? Sobre esta questão, é necessário fazer referência aos preconceitos de classe e aos raciais.  O preconceito é uma atitude em relação aos grupos sociais/raciais historicamente subjugados, que cria e mantém relações de desigualdade e de dominação em relação a eles. Esta atitude carrega um componente cognitivo (crenças preconceituosas), um componente afetivo (emoções negativas) e um componente comportamental (predisposição para se envolver em comportamentos negativos).

Os preconceitos raciais podem ser implícitos e explícitos, e se manifestam na forma de estereótipos e sentimentos negativos em relação à população pobre e negra, e são amplamente aceitos. Os preconceitos implícitos podem até mesmo entrar em conflito com atitudes conscientes e predizem vários comportamentos do mundo real. Décadas de pesquisas têm apontado duas modalidades de preconceito social e racial que parecem estar amplamente difundidas nas corporações policiais. A primeira se refere à associação entre criminalidade e população negra e/ou pobre. Esse estereótipo resulta em policiamento ostensivo, erros de identificação de suspeitos e resposta violenta, muitas vezes letais, preferencialmente contra negros. Outra forma de preconceito racial implícito é o conhecido “viés do atirador” (“shooter bias”), que se refere à tendência de a polícia atirar em civis negros com mais frequência do que em civis brancos, mesmo quando eles estão desarmados. Pode ser exemplo desse viés diferenças na atuação policial em comunidades/bairros de classes abastadas e classes desfavorecidas.

A segunda forma de preconceito consiste na desumanização de pessoas pobres/negras, o que afeta em como a sociedade percebe ou reage às violências e demais injustiças sociais que acomete essa população. Um exemplo são as diferenças nos níveis de repercussão e de comoção que eventos trágicos produzem nas pessoas em função das características sociodemográficas das vítimas. Inusitadamente, massacres em escolas dos Estados Unidos produzem mais comoção em cidadãos brasileiros que massacres produzidos pela brutalidade policial em favelas, envolvendo vítimas oriundas de grupos específicos da população. Isso, sem contar os casos em que essas violências são, até mesmo, celebradas por segmentos da população geral, como parte de uma estratégia para “redução no número de bandidos” (mais um exemplo que mostra que o preconceito leva a um erro de julgamento: a predisposição a atribuir qualidades específicas de caráter a uma pessoa ou grupo a partir da sua origem, condição socioeconômica ou cor).

Denota-se o preconceito relacionado à desumanização das pessoas pobres/negras também na evidência de menor proporção de condenações de réus quando a vítima é preta, se comparada à proporção de condenações quando a vítima é branca. Esses elementos, que circulam na cultura brasileira e na Instituição Policial, sem dúvidas contribuem para que a polícia tenha menor receio de usar a força excessiva contra pessoas pobres/negras.

Em outro plano de análise, podemos também nos indagar como os policiais veem a si mesmos no exercício de seu dever. Isto é, qual é sua identidade, qual é a imagem que têm si próprios, e o que significa ser um bom policial? No Brasil, a Instituição Policial, identificada com um corpo militar armado, cujo objetivo é "combater o crime", vem promovendo a ideia de policiais como soldados ou guerreiros que têm que lutar contra um inimigo. Portanto, a violência se torna um dos principais mecanismos para que a polícia exerça sua autoridade, pois há um inimigo que precisa ser combatido. Dessa forma, a identidade dos policiais incorpora (e legitima) a ideia da falsa guerra "nós" contra "eles", o que gera uma desconexão entre a polícia e os cidadãos. Mas, quem seriam os "nós" e quem seriam os "eles"? A ideia de “nós” contra “eles” alimenta um confronto entre os "bons" e os "maus", os "heróis" e os "bandidos". Reduzir/achatar a diversidade e a complexidade humana em dicotomias como estas apenas alimentam preconceitos que levam as pessoas a exercer e/ou aceitar violência contra pessoas que “são encaixadas” no estereótipo de criminoso/bandido. Assim é que a Polícia se desconecta da população mais desfavorecida.

Sublinha-se mais uma vez: essas identidades combativas, e os preconceitos raciais e de classe, identificáveis nas ações policiais, não decorrem tão somente dos elementos que circulam na sociedade em geral. Essas identidades, preconceitos e o uso da violência vem sendo reforçados e incentivados em situações formais de treinamento e de formação de agentes da polícia. Há inúmeros vídeos, disponíveis na internet, por meio dos quais essa subcultura institucional reitera e reforça tais elementos.

Ainda que a maioria dos policiais não se envolva em situações de violência racial, a constatação de que esses valores e práticas são transmitidos na cultura organizacional é bastante preocupante. Fala-se, inclusive, de um “currículo oculto” na formação dos polícias militares, referente a um conjunto de práticas não oficiais pelas quais se perpetuam preconceitos e práticas violentas, ainda que no discurso oficial se mencione uma “política de direitos humanos”, “... aqui na rua é diferente”.

Além de violar direitos fundamentais, tais práticas perpetuam um ciclo de violências.  A brutalidade policial produz impactos profundos na sociedade e suas consequências possuem um efeito de retroalimentação. Para os violentados e injustiçados, a polícia é vista como uma ameaça, e sua legitimidade, questionada. Sem legitimidade para exercer sua autoridade de forma colaborativa, o uso da força e da violência passam a ser os únicos recursos da polícia. A comunidade, para se defender, por vezes, também responde de forma violenta, o que é usado pela polícia como justificativa para intensificar a força de suas ações. O desfecho desse espiral de violências é bastante previsível e suscita reflexões sobre as funções fundamentais das polícias. É importante notar que esse ciclo de violências também afeta diretamente os policiais. Como resultado, temos uma sociedade com um dos maiores índices de morte de policiais. E a desigualdade racial também se faz presente na vitimização policial, uma vez que a maioria das vítimas são policiais negros, apesar de esses representarem uma menor proporção do efetivo, comparado a de policiais brancos.

Os recentes episódios de brutalidade policial também suscitam questões sobre aspectos técnicos e morais. É impossível deixar de questionar sobre a eficiência ou a intencionalidade de uma operação policial que estava sendo planejada há meses e que terminou com 25 pessoas mortas. Tampouco de uma ação de rotina envolvendo três policiais que resultou na morte de um cidadão, desarmado e algemado, por asfixia dentro do carro da polícia. Esses dois eventos que se sucederam a milhares de quilômetros de distância um do outro, aparentemente independentes, possui um elemento central que os conectam (e a muitos outros casos semelhantes): a violência sistêmica contra negros e pobres. Esse ciclo vicioso precisa ser rompido.

Apesar da gravidade e da persistência do problema, pouco se tem avançado para a sua solução. Resolver um problema tão amplo e multifacetado como o da brutalidade policial exige muito empenho e ações em diversos níveis. Mas sabemos que o caminho para as respostas eficazes invariavelmente passa por identificar as perguntas relevantes. Dentro disto precisamos, como sociedade, decidir: “Qual é a polícia o Brasil quer e precisa?”. Se, por um lado, os desafios colocados pela criminalidade, e em especial pelo crime organizado, exigem uma força policial altamente profissional, suficientemente equipada e comprometida com a segurança pública, por outro lado deve haver a proteção dos cidadãos e a garantia de seus direitos, especialmente os que estão em situação de maior vulnerabilidade social. Isso significa que a sociedade brasileira precisa discutir a polícia que deseja e precisa, considerando que os modelos de policiamento violentos e ostensivos não têm sido capazes de reduzir os crimes e, tampouco, atender às necessidades dos estratos que mais precisam de proteção.

Em nível global, o modelo de policiamento procedimentalmente justo (“Procedurally Just Policing”) tem ganhado bastante destaque por promover relações mútuas de respeito, ética, transparência e tratamento justo e igualitário entre policiais e demais cidadãos. Os resultados são bastante positivos e animadores, e indicam maior engajamento da comunidade em condutas colaborativas e pró-sociais. O sucesso desse modelo depende, além de treinamento específico e mudanças de valores na subcultura da Instituição, a substituição da identidade de “policial/soldado” pela “policial-cidadão responsivo”. Como resultado, a cooperação e observância dos cidadãos é conquistada pela legitimidade da autoridade policial e não pelo medo do uso da força que extrapola (e se converte em violência das mais graves).

 

Referências
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